Um novo espaço de análise, reflexão e pluralidade no
debate público sobre o sistema de justiça criminal






Ex-presidente do IBCCRIM. Professor Titular de Direito Penal da USP.
Advogado.
Dois artigos recentes analisaram a questão do compliance em matéria de direito penal para um grande público. Giovani A. Saavedra discutiu o tema, com muita propriedade, no Boletim de janeiro (Reflexões iniciais sobre criminal compliance, p. 11/12), destacando o quanto ainda pouco se sabe sobre o assunto. Leandro Sarcedo e Jonathan Ariel Raicher destacaram, na página de legislação do Jornal Valor Econômico (29.03.2011, p. E2), a relação existente entre a responsabilidade penal da pessoa jurídica, recentemente implantada na Espanha, e a ideia de compliance. Embora tenha sido muito bem versado pelos autores, o tema merece ser revisitado.
Nos anos 30, em função da grave crise decorrente do crack da Bolsa de Nova Yorque, nasce uma discussão sobre os modelos que seriam implantados pela política do New Deal. Na época, em face da grave crise do sistema ultraliberal americano, optou-se pela criação de agências reguladoras que pudessem, a partir do Estado e da sociedade civil, estabelecer um controle vertical das atividades empresariais. Nos anos 90 do século passado, no entanto, surge um novo mecanismo compensatório das radicais políticas neoliberais praticadas pelas próprias empresas. Trata-se do compliance: códigos internos de prevenção, organização e controle concebidos para evitar fatos delitivos(1).

A abrangência dos programas de compliance alcança diferentes esferas da atividade empresarial. Vai dos códigos de prevenção em matéria ambiental ou em defesa do consumidor a um arsenal de medidas preventivas de comportamentos delitivos referentes ao branqueamento de capitais, lavagem de dinheiro, atos de corrupção, marcos regulatórios do exercício de atividades laborais etc.
Tais programas intraempresariais preveem exercícios permanentes de diligências para detectar condutas delitivas; promoção de instrumentos de cultura organizativa para incentivo de condutas éticas tendentes a cumprir compromissos com o direito; o controle na contratação de pessoal sem antecedentes éticos duvidosos (“fichas sujas”); a adoção de procedimentos padronizados propagados aos funcionários da empresa; a adoção de controles e auditorias permanentes; a punição de envolvidos com práticas aéticas; e a adoção de medidas preventivas de cometimento de novos delitos, quando um tenha sido eventualmente identificado(2). O arsenal de medidas, talvez ainda distantes de nossa cultura empresarial, tem, dentre outras providências, a adoção da figura do whistleblowers, ou “denunciantes cívicos”, pessoas que são incentivadas a levar ao conhecimento interno atitudes que ofendam a ética empresarial estabelecidas nos programas de compliance.
Esses padrões originalmente americanos de controle dos ilícitos, a que podemos denominar voluntaristas, não são necessariamente diversos do modelo intervencionista adotado na Europa e no Brasil. Ademais, o domínio dos padrões neoliberais levou o território europeu a mesma cultura dos padrões éticos e jurídicos do common law. Não por outra razão, a adoção da responsabilidade criminal das pessoas jurídicas na Espanha, país que ainda se mantinha refratário à inovação dogmática de cariz anglo-americano, ensejou um grande debate sobre o compliance. A “febre” espanhola produziu um arsenal de artigos e livros recentes sobre o tema(3), mostrando que o assunto veio para ficar. Ademais, a adoção do art. 31, bis, no ordenamento espanhol pode determinar uma ampliação da discussão no que tange às causas excludentes de responsabilidade empresarial pelo cometimento de crimes.
O Brasil, ao instituir a responsabilização criminal das pessoas jurídicas na Lei ambiental (Lei 9.605/98), de forma lacônica e lacunosa, perdeu, na ocasião, grande chance de pensar hipóteses minorantes e excludentes de responsabilidade corporativa, caso medidas internas de prevenção fossem adotadas segundo programas sérios de atuação ética preventiva. O compliance pode vir a ser um novo instrumento legal no âmbito jurídico interno para prevenção de responsabilidades criminais, daí porque a expressão “criminal” pode vir a ser utilizada como adjetivo de compliance, como o fez Giovani Saavedra, no título de seu artigo publicado no Boletim.
Nossa expectativa é que cheguemos a um estágio de pensamento civilizatório em que a ética empresarial deixe de ser uma contradição em termos. A conferir.
Notas
(1) NIETO MARTÍN, Adan. La responsabilidad penal de las personas jurídicas: un modelo legislativo. Madrid, Iustel, 2008, p. 215.
(2) Op. cit., p. 232/233.
(3) Merecem destaque, dentre outros, os escritos de Adan Nieto Martín, já citado, e Carlos Gomez-Jara Diez, que recentemente ministrou conferência na USP a convite do IBCCRIM e do Departamento de Direito Penal daquela instituição de ensino.