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Delação premiada: ética e moral, às favas!

Advogado, diretor superintendente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e coordenador adjunto da Revista do Revista do Revista do Revista do Revista do IBCCRIM

 

É a Maquiavel que se atribui a mais estigmatizada das frases de efeito: “os fins justificam os meios”. Em favor dele, diz-se que seu tempo era outro; que sua intenção fora ver a Itália grande outra vez e, para isso, seria necessário um governo forte, em que o príncipe não recalcitrasse; fala-se, ainda, que a malfadada frase seria mera constatação, e não sugestão ao tirano, significando, na verdade, que os fins determinam os meios; enfim, apesar de não haver sequer certeza de que foi o Nicolau quem elaborou o famoso “pedacinho de ouro”, não há dúvida de que as tais palavras alcançaram o significado último da falta de ética e da ausência completa de moralidade no exercício do poder. 

Os séculos passaram, algumas tempestades e nuvens também, muitas cabeças formularam novas máximas, e chegamos ao tempo do Estado Democrático de Direito, à Era de exigência de respeito aos Direitos Humanos e ao Direito Penal mínimo e garantista, que, dentre tantos outros, tem como pilar a exigência de atuação do Leviatã presa à ética e à moral, que devem ser observadas em todas as manifestações do Estado atual, inclusive na elaboração de leis.


Nas palavras de Miguel Reale, “o Direito, como experiência humana, situa-se no plano da Ética, referindo-se a toda a problemática da conduta humana subordinada a normas de caráter obrigatório”(1), tanto que, para Vicente Ráo, dentre outros requisitos, “para alcançar o fim que se propõe, ou seja, a disciplina social”, a lei há de ser “honesta, não contendo nota alguma de torpeza ou contrária à moral”(2).

O Estado não pode, diante do que se expôs, em nenhuma hipótese, numa democracia que pretenda privilegiar um Direito Penal mínimo e garantista, incentivar, premiar condutas que firam a ética e/ou a moral, ainda que, no final, a sociedade possa se locupletar dessa violação. 

Noutras palavras: num Estado que se paute pelos ideais democráticos, em que prevaleça o respeito aos direitos humanos e que se leve pelos vetores do garantismo penal, os fins jamais justificam os meios, mas estes é que emprestam legitimidade àqueles. 

É por isso que, por exemplo, não se admite o uso da tortura como método de investigação criminal, ainda que, por meio dela, se logre, em alguns casos, impedir a morte de alguém ou de muitos. Por mais nobre que seja a finalidade pretendida, o Estado, a pretexto de atingi-la, não há de se valer de meios antiéticos nem pode incentivar quem quer que seja a empreender caminho que não se coadune com os preceitos da moral. 

Exatamente por não se poder aceitar que o Estado pratique ou incentive a prática de atos anéticos ou imorais, é que não se pode admitir a delação como forma de atenuar ou excluir apena de quem pratica ou participa da prática de crime. 

Ora, a delação sempre é ato imoral e aético, já que a própria vida em sociedade pressupõe o expurgo da traição das relações sociais e pessoais. A quebra de confiança que se opera com a delação gera, necessariamente, desagregação, e esta traz a desordem, que não se coaduna com a organização visada pelo pacto social e com a ordem constitucional legitimamente instituída(3)

Não se venha dizer que a delação feita por quem vive à margem da lei contra outros marginais pode ser considerada ética e/ou moral, pois mesmo este caso envolve necessariamente traição, violação às regras de conduta vigentes em determinada situação. É que a delação promovida por criminoso em desfavor de outro não apaga a aeticidade e/ou a imoralidade intrínsecas à traição, não valendo, aqui, a regra que vige na operação matemática de multiplicação, em que “menos com menos dá mais”. 

Ademais, é sabido que frutos de árvore que tem sua raiz envenenada são, por definição, envenenados. E basta olhar a prática da delação premiada em nosso País para se constatar que os abusos praticados por agentes públicos(4), além de denotarem certo desvio de conduta pessoal e profissional — de natureza individual, portanto—, têm origem na própria aneticidade e imoralidade ínsitas ao instituto, que afrouxam os freios inibitórios, incentivando a prática de condutas desviadas. 

Diante disso, pode-se considerar constitucional lei que chancela a delação, premiando-a jurídica e/ou materialmente d’alguma forma? Por outra: seria a lei que a prevê, para lembrar da lição de Vicente Ráo, “honesta”? 

As respostas, com o devido acatamento a quem delas diverge, são negativas para as duas questões, pois não cabe, não pode caber em ordenamento jurídico fundado em princípios democráticos e garantistas instituto que privilegie conduta aética e imoral, como a delação é, sob pena de mutilação dos próprios fundamentos constitutivos da sociedade, insculpidos, no Brasil, na Constituição da República. 

E para tirar o verniz sob o qual hoje se esconde a verdadeira natureza da delação premiada, não custa lembrar que o instituto, antes de ser temporariamente escorraçado do Direito brasileiro, tinha lugar no Título CXVI do Livro V das Ordenações Filipinas, as quais mereceram de Aníbal Bruno a seguinte avaliação: “Para julgar essa legislação, é preciso situá-la naqueles começos do século XVII, em que foi promulgada e dos quais reflete os princípios e os costumes jurídicos. Baseada na ideia da intimidação pelo terror, como era comum naqueles tempos, distinguiam-se as Filipinas pela dureza das punições, pela frequência com que era aplicável a pena de morte e pela maneira de executá-la, morte por enforcamento, morte pelo fogo até ser o corpo reduzido a pó, morte cruel precedida de tormentos cuja crueldade ficava ao arbítrio do juiz; mutilações, marca de fogo, açoites abundantemente aplicados, penas infamantes, degredos, confiscação de bens”(5).

Eis o contexto jurídico em que a delação premiada ficava bem posta, à vontade: sentada à mesa das Ordenações Filipinas, relacionando-se com a “ideia da intimidação pelo terror”, cujo “fim era incutir temor pelo castigo”(6). Hoje, rediviva — e prestigiada por muitos como se fosse nova penicilina —, flerta com a Constituição de 1988, causando preocupação àquele que não olvida que uma laranja podre no cesto estraga todas as outras. 

Vale destacar — quiçá a ouvir-se, ao fundo, que “la donna è mobile/ qual piuma al vento/ muta d’accento/ e di pensiero…”—, que o renascimento da delação premiada no ordenamento jurídico brasileiro deu a este um colorido algo esquizofrênico: Ora a traição(7) é tida como circunstância agravante ou qualificadora de crime(8), ora, na forma de delação, pode levar à isenção ou à diminuição de pena(9).

Aliás, do jeito que nestas plagas os fins andam a justificar os meios, não tardará a surgir quem proponha, por exemplo, que se introduza causa de diminuição de pena para o homicídio praticado contra alguns “inimigos da sociedade ordeira”, como traficantes ou corruptos, já que — com pedido de escusas pela péssima corruptela do provérbio — “ladrão que mata ladrão há de ter cem anos de perdão”…

Dito tudo isso, imagine-se, agora, que à hipotética manchete “delação de comparsa leva subversivo à prisão-acusação pleiteará a execução do facínora; o delator será premiado pelo Estado pelas relevantes informações prestadas”, poder-se-ia seguir reportagem sobre algumas delações famosas, havidas no passado, formuladas às autoridades constituídas, segundo regras legais vigentes. Pede-se, então, ajuda ao leitor para escolher se o “herói” da notícia seria Judas Iscariotes, Joaquim Silvério dos Reis, ou algum simpatizante do regi-me de Vichy na França ocupada, para, a seguir, sinceramente, refletir se há de se reconhecer validade jurídica (rectius: constitucionalidade) à figura da delação premiada tupiniquim. 

Como se viu, não foi objetivo das presentes reflexões a enumeração dos dispositivos constitucionais que são vergastados pela delação premiada, embora a isonomia, o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório, dentre outros, sofram arranhões flagrantes. É a própria alma constitucional que se vê ferida: admitir-se validade constitucional a dispositivo que premia a delação significa, como devido acatamento, mandar às favas aética e a moral, sendo que ambas seguirão acompanhadas pelo Estado Democrático de Direito. 

Por isso, além de ser totalmente inconveniente — pois incentiva conduta desagregadora, imoral e anética —, a chamada delação premiada mostra-se inconstitucional, incompatível com os princípios fundantes da sociedade brasileira, retratados na Constituição Federal de 1988. 

 

Notas

(1) Em Filosofia do Direito, 14ª ed., atualizada em 1991, Saraiva, p. 37.

(2) Em O Direito e a Vida dos Direitos, 5ª ed., 1999, RT, p. 282.

(3) José Joaquim Gomes Canotilho, ao tratar dos limites do poder constituinte (lição que, obviamente, alcança também os limites para a elaboração da legislação ordinária), ensina que, dentre as balizas dos “dados sociológicos, antropológicos e culturais” que devem informar a formatação da Constituição, está a “experiência de valores”, dentre eles, o valor da confiança. Eis o trecho: “Neste complexo processo de positivação constituinte nunca é demais pôr em relevo a dimensão constitutiva da experiência dos valores. Não se trata de escolher aprioristicamente valores e isolá-los num ‘reino de valores’, mas de afirmar a íntima conexão do sentimento jurídico com certos valores (realizados ou não) como, por exemplo, o valor da liberdade, da igualdade, da paz, da confiança, da segurança, da ecologia” (cf. em Direito Constitucional, 6ª ed. revista, 1993, Livraria Almedina, p. 117, o último destaque é nosso).

(4) Há notícia de que magistrado federal utiliza como “fundamento” para manter custódia temporária o fato de não haver o indiciado colaborado com as investigações; houve, ainda, caso em Ribeirão Preto, no qual cidadão, “convidado” a trocar informações pela revogação de sua prisão temporária, teve seu depoimento reportado por promotores a jornalistas, em tempo real — um sucesso de público, aliás —, dentre outros exemplos que, notórios, dispensam transcrição.

(5) Em Direito Penal, Parte Geral, tomo I, 2ª ed.,1959, Companhia Editora Forense, p. 160. Para José Frederico Marques, as Filipinas foram “legislação ‘inconsequente, injusta e cruel’, como disse Melo Freire — o livro V compendiou a barbárie penal que as monarquias absolutistas da Europa haviam transplantado do ‘livro terrível’ do Digesto, para suas leis odiosas e desumanas” (cf. em Tratado de Direito Penal, vol. 1, 1ª ed. atualizada, 1997, Bookseller, p. 116).

(6) Cf. E. Magalhães Noronha, em Direito Penal, vol. 1, 31ª ed., 1995, Saraiva, p. 54.

(7) É despiciendo lembrar que traição é gênero do qual a delação é espécie.

(8) Cf., respectivamente, art. 61, nº II, letra c, e art. 121, § 2º, nº IV, ambos do CP.

(9) Cf. art. 13 da Lei nº 9.807/99 e, por exemplo, o art. 159, § 4º, do CP.