Artigos históricos do Boletim

Monitoramento eletrônico: a sociedade do controle

Juíza de Direito aposentada

“…Em cada patamar, diante da porta do elevador, o cartaz da cara enorme o fitava da parede. Era uma dessas figuras cujos olhos seguem a gente por toda parte. O Grande Irmão zela por ti, dizia a legenda…”

George Orwell, “1984”

 

1984 não é apenas o simbólico ano do Estado totalitário imaginado (ou previsto) na ficção de George Orwell. 1984 é também o ano real em que o mundo registra a primeira utilização do monitoramento eletrônico na prática do sistema penal, implementada em Albuquerque, New Mexico, EUA(1).

Decerto é mais do que uma significativa coincidência. A introdução do monitoramento efetuado através de pulseiras eletrônicas — diz-se que sua inspiração teria sido uma aventura do Homem-Aranha, em que o vilão colocava uma engenhoca no pulso daquele herói dos quadrinhos para rastrear seus deslocamentos — marca a incorporação dos avanços da revolução científico-tecnológica ao sistema penal, marca a entrada do poder punitivo na nova era digital, marca o surgimento da concreta e sombria perspectiva do controle total do Estado sobre os indivíduos.

Tal modalidade de monitoramento eletrônico, que costuma estar associada à imposição de prisão domiciliar, consiste, em regra, na colocação de uma pulseira eletrônica no pulso ou no tornozelo do condenado ou do réu em processo penal condenatório ainda em curso. Embora, em seu emprego atual, as pulseiras eletrônicas geralmente se limitem a indicar a localização do indivíduo a elas atado, já com isso possibilitam o registro de sua movimentação pelos operadores da central de controle, pelos invisíveis observadores, nitidamente sinalizando a aproximação dos muitos olhos do Grande Irmão. 

Mas o monitoramento eletrônico não é apenas a ilegítima intervenção no corpo do indivíduo condenado, a desautorizada invasão de sua privacidade, a transformação do seu antes inviolável lar em uma quase-prisão, em uma filial daquela que era a instituição total por excelência. Já se anuncia a introdução de minúsculas câmeras nas pulseiras eletrônicas ou a implantação cirúrgica de dispositivos eletrônicos no corpo capazes de fornecer imagens ao vivo do indivíduo controlado ou indicar sua localização a qualquer momento e em qualquer lugar. 

E não é só isso. O controle vai muito além. Espraia-se pelos mais diversos espaços privados e pelo espaço público. Ultrapassa os limites do sistema penal regular. Atinge não apenas os selecionados indivíduos que, processados perante a justiça criminal, cumprem o papel de “criminosos” (não necessariamente apenas os efetivamente condenados, bastando que figurem como réus em um processo penal condenatório). O monitoramento, introduzido comas pulseiras eletrônicas destinadas a controlar condenados cumprindo a pena e réus sob ameaça de sofrê-la, avança para outros campos(2) e se soma especialmente às disseminadas câmeras de vídeo, transformando todo o território em que se movem os indivíduos — processados, condenados, suspeitos ou não — em um espaço observado por invisíveis agentes do Estado, particulares a seu serviço(3), ou quaisquer outros detentores de poder. O panóptico já não precisa se instalar em um lugar fechado, no interior dos muros da prisão, no interior da instituição total. O controle já pode estar por toda parte. A sociedade como um todo já pode ser a própria instituição total. 

Nem mesmo a manifesta exibição da perspectiva do controle total, nem mesmo a ilegítima intervenção no corpo do indivíduo vigiado, nem mesmo a desautorizada perda da privacidade impedem que a enganosa publicidade que sustenta o sistema penal(4) apresente o monitoramento eletrônico como um avanço no sentido da “humanização da pena”, tampouco impedindo que pretensos reformadores do sistema penal — mas sempre a ele apegados — apressadamente o aplaudam como a “bondosa” alternativa à pena privativa de liberdade. 

Os dominados pela enganosa publicidade, os assustados com os perigos da “sociedade do risco”, os ansiosos por segurança a qualquer preço, e, com eles, os aparentemente bem-intencionados reformadores do sistema penal, não percebem os contornos da nova disciplina social, não percebem as sombrias perspectivas do controle na era digital, não percebem a nítida tendência expansionista do poder punitivo em nosso “pós-moderno” mundo. 

Não percebem que a “pós-moderna” diversificação dos mecanismos de controle não evita o sofrimento da prisão. Ao contrário, só expande o poder punitivo em seu caminho paralelo ao crescimento da pena privativa de liberdade. Desde o final do século XX, as penas “alternativas”, as penas “negociadas”, as medidas ditas “despenalizadoras”, as variadas modalidades de “supervisão correcional” crescem em ritmo equivalente ao do inédito crescimento da prisão. Dois exemplos são eloquentes. Nos EUA, o contínuo crescimento do número de encarcerados, mais do que quadruplicado entre 1980 e 2005 (aumento de 4,3 vezes), elevando a população carcerária, ao final daquele período, para 2.193.798 pessoas (737 presos por cem mil habitantes), foi acompanhado por um aumento bastante próximo (3,6 vezes) no número de submetidos a medidas “alternativas” (probation e parole), que, em 31 de dezembro de 2005, eram 4.946.944 pessoas, mantendo-se mais ou menos constante a proporção de mais de duas pessoas submetidas ao controle extramuros para cada preso(5). Na Inglaterra e País de Gales, o aumento maior no número de ingressos de adultos nas diferentes modalidades de controle penal extramuros— no período de 1999/2000 a 2004/2005, esse ingresso aumentou em 2,36 vezes —tampouco deteve a tendência constante de crescimento da prisão, ali se registrando a mais alta proporção de encarcerados da Europa ocidental, alcançando, em 27 de outubro de 2006, 79.861 pessoas (148 presos por cem mil habitantes, conforme estimativa da população nacional naquela data, proporção essa que, em 1992, era de 88 presos e, em 2001, de 127 presos por cem mil habitantes)(6).

Os dominados pela enganosa publicidade, os assustados com os perigos da “sociedade do risco”, os ansiosos por segurança a qualquer preço, e, com eles, os aparentemente bem-intencionados reformadores do sistema penal, não percebem que a explosão de tecnologias viabilizadoras de ampliados controle e vigilância, combinada com a debilitação das normas protetoras da privacidade, combinada com desmedida expansão do poder punitivo, combinada com a troca do desejo da liberdade pela ilusão da segurança, estão nos arrastando para uma sociedade do controle, estão aproximando Estados democráticos de Estados totalitários, estão empreendendo uma viagem de “volta para o futuro” previsto para um 1984 que só se tornou passado nas folhas do calendário. 

Não percebem que a conivência com os legítimos e crescentes atentados à privacidade, que a previsão em diplomas legais e disseminada utilização de invasivos e insidiosos meios de busca de prova (quebra do sigilo de dados pessoais, interceptação de comunicações, escutas e filmagens ambientais) destinados a fazer do próprio acusado ou investigado instrumento de obtenção da “verdade” sobre seus atos tornados criminosos, que o elogio ao monitoramento eletrônico, que a aceitação da onipresente vigilância e do espraiado controle legitimam e incentivam um desvirtuado uso das tecnologias que, se fazendo acessíveis na era digital, podem se tornar ulteriormente incontroláveis se esse desvirtuado uso não for confrontado e freado por leis efetivamente respeitadoras e eficazmente garantidoras dos direitos fundamentais do indivíduo, pelo compromisso com o pensamento liberal e libertário inspirador das declarações universais de direitos e das Constituições democráticas e por sua inafastável supremacia, pelo decisivo repúdio, atuante questionamento e concreta contenção de qualquer forma de expansão do poder punitivo, pela permanente afirmação, pelo atento cultivo e pela constante solidificação do desejo da liberdade.

 

Notas

(1) Veja-se, a propósito o artigo de Vincenzo Rondinelli, “Tracking Humans: The Electronic Bracelet in a Modern World”, 1997, Criminal Lawyers’ Association Newsletter, encontrável em http://www.criminallawyers.ca/newslett/aug97/rondinelli.htm

(2) Veja-se o relatório da ACLU-American Civil Liberties Union, “Bigger Monster, Weaker Chains: The Growth of an American Surveillance Society”, elaborado por Jain Stanley e Barry Steinhardt, janeiro 2003, encontrável em http://www.aclu.org/FilesPDFs/aclu_report_bigger_monster_weaker_chains.pdf

(3) Na Inglaterra e no País de Gales o monitoramento eletrônico, introduzido em seu sistema penal em 1999, é operado por companhias de segurança privada, contratadas pelo Home Office. Outras informações sobre o monitoramento eletrônico no sistema penal britânico podem ser encontradas em www.probation.homeoffice.gov.uk

(4) Sobre a enganosa publicidade do sistema penal, reporto-me ao que escrevi em meu De Crimes, Penas e Fantasias (Niterói: Ed. Luam, 2ª ed.,1993) e, mais recentemente, em artigo específico sobre o tema intitulado “Sistema Penal e Publicidade Enganosa”, publicado às páginas 158 a 176 da Revista Brasileira de Ciências Criminais nº 52 (São Paulo: Ed. RT, janeiro-fevereiro 2005).

(5) Dados do Bureau of Justice Statistics, US Department of Justice, encontráveis em www.ojp.usdoj.gov/bjs

(6) Dados do Home Office encontráveis emwww.homeoffice.gov.uk edo InternationalCentre for Prison Studies, University of London, encontráveis em http://www.kcl.ac.uk/depsta/rel/icps/home.html