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Nova lei de drogas: retrocesso travestido de avanço 

Advogado

 

A Nova Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06): Orientação e Repressão

A nova lei de drogas adota orientação político criminal de caráter dúplice: de um lado, a prevenção para o uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes; de outro, inclemente repressão ao tráfico. A nova lei transita no fio da navalha, entre a cruz e a caldeirinha, tentando equilibrar os pratos da prevenção e da repressão: afirma o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto à sua autonomia e liberdade, compromete-se com a diversidade e com uma abordagem multidisciplinar, reconhece a necessidade de equilíbrio, a interdependência e a natureza complementar das atividades de prevenção do uso e da repressão à produção e ao tráfico.

Nada obstante o discurso conciliatório, o pendor repressivo da Lei nº 11.343/06 é inegável e reafirma a opção do legislador pelo alargamento do campo punitivo. O novo diploma legal, nesse passo, possui duas marcas distintivas:

  1. sanciona a aquisição, a guarda, o depósito, o transporte, o porte, o semeio, o cultivo e a colheita para consumo pessoal com sanções não privativas de liberdade.

  2. agrava a repressão ao tráfico e à produção não autorizada, inclusive com a criação de novas figuras típicas, como o informante colaborador do tráfico (reclusão de 2 a 6 anos) e o financiador do tráfico (reclusão de 8 a 20 anos), majorando a pena mínima do tráfico e figuras equiparadas de 3 para 5 anos de reclusão, vedando ainda fiança, sursis, graça, indulto, anistia, liberdade provisória e substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.

Há quem sustente ter optado a nova lei pela não incriminação do porte para consumo pessoal ao argumento de que a Lei de Introdução ao Código Penal apenas considera crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa.

Com a devida vênia, a não cominação de pena de reclusão ou detenção ao porte para consumo pessoal não desnatura o indiscutível caráter penal da norma em questão, malgrado a proibição de incriminação de condutas que não excedem o âmbito do próprio autor. Afinal, a natureza da sanção não possui o condão de determinar, de per se, se uma determinada conduta é ou não criminosa, especialmente quando tal conduta está prevista no capítulo da lei que trata dos crimes e das penas. Além disso, o inciso XLVI do art. 5º da Constituição Federal dispõe que a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, a privação ou restrição da liberdade, a perda de bens, a multa, a prestação social alternativa e a suspensão ou interdição de direitos. Alocução “entre outras” deixa evidente que o rol é meramente exemplificativo. Continua sendo, portanto, o porte para uso próprio uma infração penal de menor potencial ofensivo.

No que diz respeito à previsão de sanções alternativas à prisão, no caso de porte para uso próprio, em que pese louvável por ser dos males o menor, na prática não representa nenhuma novidade em comparação à legislação anterior, que já permitia a transação penal e também a aplicação de substitutivos penais em caso de condenação definitiva (sursis e penas restritivas de direitos, exceto no caso de reincidência em crime doloso).

Já o exacerbamento punitivo patrocinado pela nova lei de drogas em relação ao tráfico representa uma significativa mudança. Desde a edição da malsinada Lei dos Crimes Hediondos e, posteriormente, com o advento da 9.714/98, estabeleceu-se um acerbo debate no meio jurídico a respeito da possibilidade de aplicação dos substitutivos penais (sursis e penas restritivas de direito) em relação ao tráfico de drogas, delito equiparado a hediondo e submetido, portanto, ao regime jurídico estabelecido pela Lei nº 8.072/90.

Após muita polêmica e não poucas hesitações, o Supremo Tribunal Federal entendeu admissível a aplicação dos substitutivos penais aos crimes hediondos e equiparados. Dois julgados em especial foram fundamentais para a pacificação da matéria: HC nº 84.414/SP (STF, 1ª T., rel. Marco Aurélio, v.u., j. 14.09.04), onde se decidiu pela possibilidade da aplicação da suspensão condicional da pena (art. 77 do CP) aos crimes hediondos e equiparados, desde que presentes os requisitos legais, tendo em vista a ausência de vedação expressa, bem como a inexistência de incompatibilidade a priori, e, posteriormente, HC nº 84.928 (STF, 1ª T., rel. Cezar Peluso, v.u., j. 27.09.05), onde se entendeu não haver óbice à aplicação da regra do art. 44 do CP, tendo em vista que a Lei nº 8.072/90, embora determine o regime integralmente fechado, não proibiu sua substituição por pena restritiva de direitos, não sendo pertinente cogitar-se do regime prisional de execução como obstáculo à substituição. Além do mais, a Lei nº 9.714/98, posterior à Lei nº 8.072/90, ao ampliar a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos, não vedou sua aplicação aos crimes hediondos e equiparados.

Sérgio Salomão Shecaira, um dos primeiros doutrinadores a defender a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos nos casos de tráfico de drogas, anotou com precisão que “nem toda conduta descrita no artigo 12 da Lei de Tóxicos há de ser considerada ‘hedionda’”, cabendo “ao magistrado, como observa com sensibilidade o procurador de Justiça Mário de Magalhães Papaterra Limongi, ‘distinguir entre quem é verdadeiramente perigoso e quem apenas é uma pequena peça desta estrutura podre’” (“Mudança de mentalidade”, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 27, jul./set. 1999, pp. 353/354).

Nada obstante, a nova lei de drogas, ao majorar a pena mínima do tráfico e figuras equiparadas de 3 para 5 anos de reclusão, adotou a privação da liberdade como única sanção possível, impedindo expressamente a substituição por pena restritiva de direitos (art. 33, § 4º). O legislador, uma vez mais, apresenta um voto de desconfiança em relação ao juiz criminal, reduzindo acentuadamente o âmbito da individualização da pena.

O novel diploma, como se vê, segue o ideário da war on drugs. Nem mesmo o colapso do sistema prisional arrefeceu o ímpeto punitivo do legislador pátrio, para quem a sensação de insegurança causada pelo crime (e muito especialmente pelo “problema” das drogas ilícitas) deve ser combatida com ordem, disciplina e punição sem quartel. Encarceramento em massa. Prisão processual obrigatória. Penas longas. Tolerância zero. O proibicionismo triunfou novamente e talvez seja uma das raras unanimidades planetárias, da direita à esquerda, do centro à periferia, da ditadura à democracia. Nesse contexto, a nova lei de drogas representa mais do mesmo: a opção pelo modelo proibicionista e sua política criminal bélica, com derramamento de sangue.

No que tem de essencial, portanto, a Lei nº 11.343/06 é draconiana. O alardeado abrandamento do tratamento dado ao porte para consumo pessoal é, na verdade, uma cortina de fumaça com o objetivo de contrabalançar o agravamento da punição ao tráfico. No entanto, somente será possível encontrar uma solução racional e eficaz para ambas as questões fora da proibição, pois, conforme a lição que se pode extrair da Lei Seca que proibiu o álcool nos EUA entre 1919 e 1933 (Volstead Act), é melhor, mais eficiente e razoável tentar controlar e prevenir do que proibir e reprimir.