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O eterno retorno da Lei e Ordem 4

Em 17/06/1971, Richard Nixon, então presidente, disse numa famosa entrevista:

“O inimigo público número um dos Estados Unidos é o abuso de drogas. Para combater e derrotar esse inimigo, é necessário empreender uma nova ofensiva total. […] Esta será uma ofensiva mundial. Será uma ofensiva abrangente. Será uma ofensiva que contará com a cooperação dos governos envolvidos.”

Todo mundo sabe o que resultou — e ainda resulta — dessa declaração de guerra às drogas.

Anos antes, em 1964, Barry Goldwater, republicano que viria a ser fragorosamente derrotado por Lyndon Johnson, cunhava de forma contundente (e raivosa) o discurso de Lei e Ordem. Na convenção que homologou sua candidatura, afirmou:

“Esta noite, há violência em nossas ruas; e nada prepara mais o caminho para a tirania do que o fracasso em manter as ruas a salvo de valentões e saqueadores; o extremismo na defesa da liberdade não é um vício. E permitam-me lembrar também que a moderação na busca pela justiça não é uma virtude.”

Goldwater foi derrotado, mas o discurso não. Nixon o encampou anos depois: a “Guerra às Drogas” tornou-se o complemento perfeito para o discurso de Lei e Ordem, oferecendo um inimigo tangível e justificativas para políticas policiais mais duras.


A Lei dos Crimes Hediondos e o pânico moral no Brasil

Em 1990, o Brasil aprovava, a toque de caixa, a Lei dos Crimes Hediondos — a primeira de várias. Como lembra Alberto Silva Franco, em seu clássico Crimes Hediondos, o projeto fora elaborado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, com justificativas assinadas por Damásio de Jesus, apoiadas em alarmantes índices de criminalidade:

“(…) a criminalidade, principalmente a violenta, tinha o seu momento histórico de intenso crescimento, aproveitando-se de uma legislação penal excessivamente liberal… Uma onda de roubos, estupros, homicídios, extorsões mediante sequestro etc. vem intranquilizando a nossa população e criando um clima de pânico geral.”

Embora o pânico se concentrasse nos sequestros, foi no tráfico de drogas que as consequências foram mais expressivas — especialmente pela inconstitucional determinação de regime inicial integralmente fechado. Os juízes, em sua maioria, acataram a regra.

Ranulfo Melo Freire alertou:

“O proclamado atrelamento do juiz ao direito infraconstitucional… O juiz despe-se de todo o juízo crítico para acolher a lei ordinária, tal como se apresenta…”

O STF levou 15 anos para declarar a inconstitucionalidade — e ainda assim por estreita maioria. Quando o fez, o estrago estava feito: a população prisional saltara de 90 mil para mais de 400 mil presos, segundo o Infopen, sem contar o encarceramento feminino impulsionado pelo tráfico.


O populismo penal se repete

Décadas depois, em 2019, surgiu o “pacote anticrime” do então ministro Sérgio Moro, repetindo premissas antigas e colidindo com o alerta atribuído a Einstein: insanidade é repetir os mesmos atos e esperar resultados diferentes.

Sem lograr instituir a prisão após segunda instância, Moro investiu na ampliação das excludentes de ilicitude, quase uma licença para matar. Na exposição de motivos, justificou proteger policiais que atuam em comunidades:

“É comum que não tenha possibilidade de distinguir pessoas de bem dos meliantes… É preciso dar-lhe proteção legal…”

Apesar de não aprovada integralmente, a retórica política que incentivou a violência policial manteve o Brasil na liderança mundial em letalidade policial — e as condenações na Corte Interamericana não produziram aprendizado institucional.


Mais rigor, mais crime

Multiplicar por dez a população prisional não trouxe segurança. Apenas fortaleceu facções, que encontraram nas prisões terreno fértil para controlar, cooptar e organizar.

Mesmo após novas legislações e maior atenção do STF aos princípios constitucionais, o encarceramento explodiu. Como demonstro em Sentenciando Tráfico, 90% das prisões por drogas ocorrem sem investigação, com pequenas apreensões e réus primários — mas 70% acabam condenados em regime fechado.

Enquanto isso, leis penais continuam aumentando penas de forma casuística, reagindo a fatos midiáticos para dar a impressão de ação política.


O crime se organiza com — e não apesar — do Estado

A sensação de insegurança jamais diminuiu. Facções se fortaleceram, ficaram mais armadas e mais ricas — sempre contando com redes de proteção dentro das polícias e da administração pública.

O assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes expôs esse entrelaçamento. Os assassinos foram condenados seis anos depois, e o general Braga Netto — então interventor — acabou condenado por atentado à democracia em 2022.

Há avanços pontuais da Polícia Federal em operações de inteligência que atacam o fluxo financeiro das organizações criminosas. Mas episódios como a chacina do Rio revelam a persistência de operações letais e estéreis, repetidas há décadas sem alterar o cenário.


O eterno retorno

Agora, ressurge uma nova onda de populismo penal: leis anti-facções, aumentos generalizados de pena e o retorno do vocabulário do narcoterrorismo, ecoando a retórica da Era Trump.

É o mesmo ciclo: xenofobia, seletividade racial, pânico moral, interesses geopolíticos — e os mesmos resultados pífios.

O eterno retorno da Lei e Ordem garante apenas uma coisa:

novas promessas de mais lei e mais ordem no futuro próximo.


Referências

  1. Declaração de Richard Nixon sobre a Guerra às Drogas (1971)
    https://www.nixonfoundation.org

  2. Discurso de Barry Goldwater na Convenção Republicana (1964)
    https://www.americanrhetoric.com

  3. Lei dos Crimes Hediondos — Histórico e análise (Alberto Silva Franco)
    https://www.editorarevistas.com.br

  4. Dados do Sistema Prisional — Infopen
    https://www.gov.br/depen

  5. Pacote Anticrime (2019) — Exposição de Motivos de Sérgio Moro
    https://www.gov.br

  6. Corte Interamericana de Direitos Humanos — Casos brasileiros
    https://www.corteidh.or.cr