Um novo espaço de análise, reflexão e pluralidade no
debate público sobre o sistema de justiça criminal






Doutoranda em Direito Penal (USP), coordenadora de Internet do IBCCRIMe assessora de ministro (STF)
As idas e vindas do legislador em matéria de efeitos do pagamento e do parcelamento sobre a punibilidade nos crimes tributários já não é novidade. Desde 1990, para não adentrarmos em demasia no “túnel do tempo”, assistimos a cinco mudanças de orientação legislativa na matéria.
A disciplina da extinção da punibilidade pelo pagamento da Lei nº 8.137/90 suprimida no ano seguinte (Lei nº 8.383), retomada em 1995 (Lei nº 9.249), alterada parcialmente em 2000 (Lei nº 9.983)(1), retoma agora renovado fôlego com a nova disciplina inaugurada pelo art. 9º da Lei nº 10.684, de 30 de maio de 2003.

Os efeitos do parcelamento sobre a punibilidade, por seu turno, têm uma história mais tortuosa. Sob a égide da disciplina do art. 34 da Lei nº 9.249/95, seus efeitos foram interpretados diferentemente pelas diversas Cortes de Justiça brasileiras, sendo célebres as divergências de posicionamento entre o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça e, dentro deste, entre suas Quinta e Sexta Turmas (divergência esta encerrada tão-somente com o julgamento do RHC nº 11.598/SC pela Terceira Seção do STJ). Mas a melindrosa história dos efeitos do parcelamento sobre a punibilidade nos crimes tributários não se resume à interpretação do artigo antes mencionado; em 2000, a Lei nº 9.964, ao criar o Programa de Recuperação Fiscal – Refis, instituiu uma “causa de suspensão da punibilidade” nos crimes tributários para as empresas que aderissem ao programa antes do recebimento da denúncia. Ao cabo do pagamento da última parcela do referido parcelamento, extinta estaria a punibilidade (art. 15).
Pois bem, em maio passado, uma nova norma passa a reger os efeitos do pagamento e do parcelamento sobre a punibilidade dos crimes tributários — aparentemente, um “Novo Refis” ou “Refis II”, como tem sido chamado —, o art. 9º da Lei nº 10.684, verbis:
“Art. 9º É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1o e 2º da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.
De saída, importante destacar uma profunda mudança na nova disciplina como um todo: o marco temporal do recebimento da denúncia é suprimido como limite para os efeitos sobre a punibilidade (suspensão ou extinção) do parcelamento ou do pagamento. Não há mais marco temporal.
Uma análise preliminar da nova disciplina impõe uma abordagem separada em dois tópicos: a) efeitos do parcelamento sobre a punibilidade; b) efeitos do pagamento sobre a punibilidade. Isto porque, adiantando um pouco o quanto a seguir se explicita, entendemos que a nova disciplina é mais abrangente do que um simples “novo Refis”, e sob os dois aspectos: do pagamento e do parcelamento.
Iniciemos com o parcelamento. Primeiramente, a inclusão em regime de parcelamento implica na suspensão da pretensão punitiva pelo período respectivo. O legislador foi mais sábio aqui do que na disciplina anterior (da Lei nº 9.964/00) pois, desta vez, referiu-se a quase todos os crimes tributários existentes no nosso ordenamento(2). Mas mais que isto, o caput do art. 9º cria uma disciplina geral para os efeitos penais do parcelamento, ou seja, esta disciplina, em nosso entender, aplica-se a qualquer parcelamento, previsto por qualquer lei, em qualquer esfera (federal, estadual e municipal). A esta conclusão se chega, especialmente, através da comparação entre o atual texto e aquele do caput do art. 15 da Lei nº 9.944/00 que limitava a suspensão da pretensão punitiva àqueles casos nos quais a pessoa jurídica estivesse “incluída no Refis” e desde que a inclusão “no Programa” ocorresse antes do recebimento da denúncia; isto é, o legislador de 2000 expressamente limitava os efeitos jurídico-penais do parcelamento àquele parcelamento por ele denominado Refis ou Programa de Recuperação Fiscal, criado e disciplinado por aquela específica lei. O mesmo não foi feito na nova disciplina que amplia os efeitos jurídico-penais do parcelamento a qualquer “regime de parcelamento”, não importa se criado pela própria Lei nº 10.684 ou por outras; não importa se federal, estadual ou municipal.
Em síntese: deferido o parcelamento suspensa está a punibilidade nos crimes tributários, não importando o momento no qual se encontra a investigação ou o processo penal. Obviamente, por ser mais benéfica, retroage atingindo todos os cidadãos que se encontrem nessa situação, não importando igualmente o estágio processual (art. 5º, XL, CF, art. 2º, CP).
Uma observação importante relativa a um dos crimes de maior incidência prática que é o previsto no art. 168-A, §1º, inc. I, do CP: a Lei nº 10.684 não autorizou o parcelamento dos débitos jun-to ao INSS oriundos de contribuições sociais devidas pelo empregado, descontadas e recolhidas pelo empregador. Ou seja, nestes casos, a aplicação da nova disciplina jurídica do parcelamento está afastada, mas, note-se que não por óbice oriundo da disciplina penal, mas, sim, da própria disciplina tributária que vedou o parcelamento desses débitos. Nada impede que, na esfera tributária, se discuta a questão (tributária, frise-se) sob o ponto de vista da quebra do princípio da igualdade (art. 150, II, CF) caso em que, havendo sucesso e sendo deferido o parcelamento, aplicar-se-á in continenti a disciplina penal sob comento.
Quanto aos efeitos do pagamento, uma leitura apressada, feita sob a ótica da disciplina do antigo Refis, do novo § 2º do art. 9º poderia levar à crença de se tratar de norma que faz referência ao momento final do parcelamento, ou seja, que o final do parcelamento, implicando em pagamento, levaria à extinção da punibilidade. Sim, o entendimento está correto, mas o dispositivo diz mais que isso. Em nosso entender, o dispositivo pode perfeitamente ser interpretado de forma a permitir que sempre que houver pagamento, independentemente de ser o momento final do parcelamento, extinta estará a punibilidade e, agora, sem limite temporal, isto é, sem que o recebimento da denúncia inviabilize o efeito jurídico-penal do pagamento integral do tributo.
Essa interpretação se assenta em dois fundamentos. Primeiro deles: na disciplina anterior (do Refis), o § 3º expressamente atrelava a extinção da punibilidade ao pagamento das parcelas do parcelamento, verbis: “Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento antes do recebimento da denúncia criminal” (grifamos). Anova disciplina é bem diferente sob este aspecto, confira-se: “Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios” (art. 9º, § 2º). O segundo deles reside na questão da igualdade: se o agente pode, a qualquer momento, parcelar o débito, suspendendo a punibilidade que, ao cabo do parcelamento, será extinta, com maior razão a mesma extinção deve atingir aquele que opta por, num só ato, pagar integralmente o débito.
Tal qual ocorre relativamente ao parcelamento, a nova disciplina dos efeitos jurídico-penais do pagamento, por ser mais benéfica, retroage atingindo todos os cidadãos que se encontrem nesta situação, não importando, igualmente, o estágio processual (art. 5º, XL, CF, art. 2º, CP).
A título de remate, é importante ressaltar que, embora críticas possam ser sempre feitas aos efeitos penais do pagamento e do parcelamento nos crimes tributários (desde sua legitimidade até o questionamento acerca de sua moralidade), verdade é que com esta nova disciplina se supera a quebra instituída pelos artigos 168-A e 337-A em 2000 e se retorna a um salutar tratamento harmônico, nesta matéria(3), para os crimes tributários.
Notas
(1) Fazemos referência aos artigos 168-A e 337-A do CP que, respectivamente, em seus §§ 2º e 3º, no primeiro caso, e 1º e 2º, no segundo, criaram uma inadmissível disciplina casuísta para as hipóteses de “apropriação indébita previdenciária” e “sonegação de contribuição previdenciária”, como se válido fosse o tratamento diferenciado (mais gravoso nestes casos) em função da espécie tributária objeto do delito (cf. nosso: “Crimes previdenciários: arts. 168-A e 337-A do CP – Aspectos gerais”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 36, out-dez/01, pp. 309-350).
(2) O que reforça a tese por nós defendida de que todos estes crimes têm por objeto de tutela o mesmo bem jurídico e, daí, a impossibilidade, repita-se, de tratamento diferenciado em função tão-somente da espécie tributária objeto do crime em concreto. A afirmação deque a referência se fez a “quase” todos crimes tributários fica por conta da indevida omissão do crime de descaminho (art. 334, CP) que, tal qual os mencionados, protege igualmente o mesmo bem jurídico e, assim, deve ser objeto do mesmo “regime jurídico” aplicável aos demais crimes tributários.
(3) Fica em aberto, ainda, a inadmissível diferença entre as penas previstas para as condutas idênticas previstas nos arts. 2º, II, da Lei nº8.137/90 e 168-A, § 1º, I, do CP, com base tão-somente na espécie tributária objeto da conduta, o que, sob o ponto de vista constitucional, é insustentável.