Um novo espaço de análise, reflexão e pluralidade no
debate público sobre o sistema de justiça criminal






Doutora em Direito Penal
O paternalismo legal tem por base o seguinte princípio antiliberal, assim apresentado por Stuart Mill: “É sempre uma boa e relevante (embora não necessariamente determinante) razão em suporte a uma proibição criminal que ela prevenirá dano (físico, psicológico ou econômico) ao próprio autor”(2). Mill rejeita o mencionado princípio. Feinberg, em seu extenso estudo sobre os limites morais do Direito Penal(3), analisou o paternalismo legal no terceiro volume, denominado “dano a si mesmo”, no qual ele estabelece a seguinte distinção:
“1. Paternalismo presumivelmente censurável, que consiste em tratar adultos como se fossem crianças, ou crianças mais velhas como se fossem mais novas, forçando-os a agir ou deixar de agir de certas maneiras, seja
Em seu entendimento, o paternalismo legal (não liberal)(5) propriamente dito é somente aquele descrito no item 1.a: paternalismo benevolente presumivelmente censurável, consistente em tratar adultos como se fossem crianças, ou crianças mais velhas como se fossem mais novas, forçando-os a agir ou deixar de agir de certas maneiras, para seu próprio bem, não importando seus próprios desejos na matéria. A censurabilidade de tal forma de tutela estatal está na sua colisão coma autodeterminação e autonomia da vontade de seres competentes, ideias que formam a base de um sistema liberal.
Importante é a distinção entre leis paternalistas aplicadas a casos que envolvem uma só parte (por exemplo, leis proibindo o suicídio, a automutilação, o uso de drogas) e leis paternalistas aplicadas a casos que envolvem duas partes (por exemplo, leis proibindo a eutanásia, o duelo, a venda de drogas), estas também conhecidas como paternalismo indireto.
Os casos envolvendo duas partes “são paternalistas quando o pedido de uma das partes (ou seu consentimento) para a ação da segunda parte não dá à esta licença para fazer o que aquela quer (ou está desejando) que seja feito. Se a segunda parte apesar disso executa o acordo, então ela terá violado a lei e será punida. A lei que impede a primeira parte de ter o que ela deseja interfere em sua liberdade ao fundamento deque sabe o que é melhor para seu próprio bem. Por tal razão, a lei é paternalista relativamente à primeira parte ainda que o crime definido seja cometido pela segunda parte”(6). Nestes casos, mesmo que as sanções não sejam aplicadas diretamente à primeira parte, “sua liberdade também está restringida pela lei, e suas escolhas, frustradas”(7). O objetivo da lei é proteger a primeira parte quaisquer que sejam seus desejos sobre o assunto, e é, assim, paternalista relativamente a ela.
Para ambas as situações, chamadas por Dworkin de “paternalismo puro e impuro”, Feinberg prefere os termos paternalismo direto e indireto. O primeiro abarcando casos de uma só parte nos quais “as classes de pessoas cuja liberdade é restringida por meio da ameaça de punição é idêntica à classe de pessoas cujo benefício se pretende promover com tais sanções”(8), e, como ele destaca, “quase todas leis paternalistas diretas são casos de uma só parte”(9). O segundo, casos de duas partes, onde o bem estar de uma classe de pessoas envolve a restrição à liberdade de outras pessoas mediante a ameaça de pena(10).
A diferença entre o harm to others principle (“princípio do dano a outrem”)(11) e o paternalismo indireto se reduz às consequências (ou não) do consentimento da “vítima”: “O princípio do dano a outros proíbe A de aplicar uma droga danosa a B sem o consentimento genuíno de B, mas permite a A dar ou vender uma droga perigosa a B com o consentimento genuíno de B; enquanto o paternalismo indireto proíbe Ade dar uma droga perigosa a B, dando ou não B o seu consentimento genuíno. Ao ignorar o consentimento de B, a lei paternalista desconsidera a sua opinião/julgamento e restringe sua liberdade ‘para o seu próprio bem’”(12).
O consentimento genuíno de um adulto pode ser colocado sob suspeita e fornecer fundamentos para a criminalização sempre que for causado por uma desvantagem social, caso em que, afirma Schünemann, a criminalização estaria legitimada por um dever do Estado Social de impedir a exploração de seus cidadãos. Embora, neste caso, adverte ele, sempre haja o risco de que o Direito Penal se torne a ultima ratio de uma política social falida(13).
Da legislação penal em vigor no Brasil, foram selecionados crimes suspeitos de paternalismo direto e/ou indireto. Como se sabe, os casos de paternalismo direto são mais fáceis de identificar, todavia, tentou-se também apontar alguns crimes que podem representar situações de paternalismo indireto, sempre tendo em mente que outros fundamentos também podem lhes dar suporte ou legitimação. É que quando se aborda o paternalismo indireto, é comum identificar outras razões fundantes da criminalização, ainda que igualmente acabem por não legitimar a punição sob o ponto de vista liberal.
É o que parece suceder com o crime de rufianismo (artigo 230, Código Penal brasileiro), caso em que a prostituição em si não é punida. Aqui, dois níveis de fundamentação parecem dar suporte ao crime: o primeiro é moralista e afirma que a prostituição é ruim; o segundo, contudo, é paternalista, porque a proibição, embora sendo dirigida àqueles que vivem dos proveitos da prostituição alheia, é estabelecida para proteger a prostituta de ter o que ela deseja, sob o fundamento de que o Estado sabe melhoro que é bom para ela, ou seja, “não ser uma prostituta”.
Quando falamos de paternalismo, direto ou indireto, em caso envolvendo uma ou de duas partes, devemos ter em mente a definição restrita de Feinberg acima mencionada e que não inclui o que ele chama de paternalismo benevolente, “que consiste em defender pessoas relativamente desamparadas ou vulneráveis de perigos externos, incluindo danos de outras pessoas quando as partes protegidas não consentiram voluntariamente para o risco, e fazendo-o de uma maneira análoga, em sua motivação e vigilância, àquilo que os pais fazem para proteger seus filhos”(14).
2.1. Crimes suspeitos de paternalismo direto
Na Lei de Contravenções penais, os artigos 59 e 60 parecem assentar-se, ainda que parcialmente, em bases paternalistas. Em ambos os casos, a pessoa punida é a mesma cujos interesses se procura proteger pela contravenção. A ideia é claramente paternalista já que pune sobre a base de que é ruim para alguém que se entregue à ociosidade ou à mendicância, muito embora razões moralistas também possam ser identificadas na base de ambas as contravenções(15). O mesmo sucede com o crime previsto no artigo 28 da Lei nº 11.343/06 que pune aquele que “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogassem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.
2.2. Crimes suspeitos de paternalismo indireto
Se não temos muitos casos de paternalismo direto na legislação penal nacional, o mesmo não pode ser dito a respeito do paternalismo indireto(16).
De saída, um fundamento de natureza paternalista indireta pode ser identificado no artigo 122 do Código Penal, na conduta de prestar auxílio para cometer suicídio, muito embora a conduta somente seja punida quando alguma espécie de dano sobrevenha(17). Este é o campo da discussão sobrea eutanásia.
No crime de manter “casa de prostituição” (artigo 122 do Código Penal), muito embora seja claro o aspecto moralista, está contido também um componente paternalista, porque nega indiretamente à prostituta um lugar para exercer sua profissão baseado num raciocínio que pode ser assim expressado: “como ser prostituta é ruim, proibindo alguém de lhe dar auxílio (tendo uma casa de prostituição), as pessoas podem ser demovidas da ideia de se tornarem prostitutas”.
Este crime se encaixa na definição de paternalismo legal moralista de Feinberg, “(onde paternalismo e moralismo se justapõem via a vaga noção de ‘dano moral’): É sempre uma boa razão em suporte a uma determinada proibição que ela seja necessária para impedir danos morais (como opostos a danos físicos, psicológicos ou econômicos) ao próprio autor. (Dano moral é ‘dano ao caráter de alguém’, ‘tornar-se uma pessoa pior’, como oposto à ideia de dano ao corpo, à psique ou ao bolso de alguém)”(18).
No crime de rufianismo, definido no artigo 230 do Código Penal, o paternalismo indireto reflete-se na figura do caput (“tirar proveito da prostituição alheia, participando diretamente de seus lucros ou fazendo-se sustentar, no todo ou em parte, por quem a exerça”)(19). Muito embora se possa identificar seu tom moralista já de saída, há também um fundamento paternalista na medida em que se busca impedir que a prostituta possa ter um “gerente”, ou de contratar alguém para lhe selecionar ou arrumar clientes que sejam confiáveis, por exemplo. A ideia implícita é a de que como a prostituição é ruim (fundamento moralista), proibir alguém deter lucro com ela é uma forma de impedir que alguém se torne uma prostituta, o que é melhor para esta pessoa (paternalismo indireto). O crime também parece adequar-se à definição de Feinberg, antes comentada, de paternalismo legal moralista.
Como ele destaca, “em alguns casos envolvendo duas partes, ambas estão sujeitas apenas, ainda que a lei deseje proteger uma só, o solicitador ou comprador. Leis sobre prostituição que punem ‘João’ e a prostituta satisfazem esta definição”(20). Este não é o caso do Direito Penal brasileiro que não pune a prostituição em si mesma, o que, talvez, possa explicar a severidade das penas previstas para a parte, que é a única punida, nos crimes indicados acima e abaixo.
Os crimes de tráfico internacional de pessoas (art. 231, CP) e tráfico interno de pessoas (art. 231-A, CP) também se assentam, ainda que parcialmente, em razões paternalistas no que diz respeito às figuras do caput. As condutas descritas nos parágrafos, todavia, como também ocorre relativamente ao artigo 230 (supra), visam situações nas quais não há um consentimento genuíno e são, assim, legitimadas pelo princípio do dano ao outro (harm to others principle).
Quanto às condutas punidas no caput de ambos os artigos, ao fundamento moralista da proibição soma-se o paternalista quando se procura prevenir a prática da prostituição dentro do território nacional ou no estrangeiro. A ideia de fundo, também aqui, é a de que a prostituição é ruim (fundamento moralista), proibindo alguém de “promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro” (art. 231) ou praticar essas condutas dentro do território nacional (art. 231-A) é uma forma impedir que alguém se torne uma prostituta, para seu próprio bem (paternalismo indireto). O crime também parece adequar-se à definição de paternalismo legal moralista.
Os artigos 283 e 284 do Código Penal trazem mais duas hipóteses de paternalismo indireto. A pessoa que pratica o charlatanismo ou o curandeirismo é punida para proteger outras pessoas, que possam ser iludidas ou enganadas, ou até menos que isso, já que esse elemento não está previsto em nenhum dos tipos penais. Mas aqui o engano ou a ilusão não é intenso o bastante para causar a falta de consentimento genuíno na vítima, o que implica dizer que a norma contém uma presunção direcionada a adultos, tratando-os como se fossem crianças, como se fossem sempre ingênuos e frágeis quando expostos a tais práticas. Como assevera Hirsch, é extremamente injusto punir alguém exclusivamente para proteger adultos tratados como crianças(21-22).
Outras condutas que guardam aspectos paternalistas indiretos são as definidas nos artigos 50 e 58 da Lei de Contravenções Penais (jogo de azar e jogo do bicho), no artigo 4º, “a”, da Lei nº 1521/51, que pune a usura, e nos crimes relacionados ao tráfico de drogas (art. 33 e segs. da Lei nº 11.343/06).
Há também figuras mistas, suspeitas de paternalismo direto e indireto, definidas por Feinberg como casos de duas partes, nos quais “ambas as partes são submetidas a sanções ainda que a lei se dirija à proteção de somente uma delas”(23). Tal parece ser o caso do crime descrito no artigo 15 da Lei nº 9.434/97, que pune tanto o vendedor como o comprador de órgãos, tecidos ou partes do corpo humano, muito embora o objetivo da incriminação seja a proteção do vendedor. E aqui não nos parece que a questão seja simplesmente a da vedação de alienação da própria vida(24), de resto questionável sob diversos pontos de vista(25), mas também porque nem toda venda de órgãos, tecidos ou partes do corpo humano implica em sacrifício da vida, e porque toda decisão que implique simplesmente em autolesão deve ser devidamente balanceada com a ideia de autonomia pessoal, igualmente inerente ao valor constitucionalmente central da dignidade humana, que está sempre em jogo quando falamos sobre o uso paternalista da sanção penal.
Notas
(1) Estas reflexões são oriundas dos trabalhos desenvolvidos no âmbito do Grupo de Pesquisa financiado CAPES-DAAD, projeto PROBRAL, que reúne pesquisadores da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e do Departamento de Filosofia e Direito Penal Universidade Ludwig-Maximilianus, Munique, Alemanha, coordenados pelos profs. drs. Miguel Reale Júnior e Bernd Schünemann, tendo como integrantes Luis Greco Filho, Marina Pinhão Coelho e a ora autora; contando, ainda, com a colaboração, no Brasil, de Helena Regina Lobo da Costa, Janaina Paschoal, Mariângela Magalhães e Renato Jorge Mello Silveira.
(2) FEINBERG, Joel. Harm to self: The Moral Limits of the Criminal Law. Oxford: Oxford University Press, 1986, v. 3, p. 4; todas traduções são livres.
(3) O autor continua usando o termo paternalismo porque se tornou um standard, muito embora não concorde totalmente com seu emprego porque, em primeiro lugar, é em si pejorativo e, em segundo, conduz as confusões com outras situações que também podem ser chamadas de paternalistas (FEINBERG, Joel. Op. cit., v. 3, p. 4).
(4) FEINBERG, Joel. Op. cit., v. 3, p. 5.
(5) FEINBERG, Joel. Op. cit., v. 3, pp. 6-7.
(6) FEINBERG, Joel. Op. cit., v. 3, p. 9.
(7) FEINBERG, Joel. Op. cit., v. 3, p. 9.
(8) FEINBERG, Joel. Op. cit., v. 3, p. 9.
(9) FEINBERG, Joel. Op. cit., v. 3, p. 9.
(10) FEINBERG, Joel. Op. cit., v. 3, p. 9.
(11) Não nos parece que o harm to others principle possa ser simplesmente traduzido por princípio da lesividade. É que o harm to others principle, na concepção do autor, envolve da lesividade a outrem e o princípio da lesividade, como comumente definido, não traz consigo, necessariamente, essa ideia de alteridade.
(12) FEINBERG, Joel. Op. cit., v. 3, p. 10.
(13) SCHÜNEMANN, Bernd. “O Direito Penal é a ultima ratio da proteção de bens jurídicos! – Sobre os limites invioláveis do Direito Penal em um Estado de Direito liberal”. Tradução de Luis Greco. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 53, mar.-abr. 2005, p. 35.
(14) FEINBERG, Joel. Op. cit., v. 3, p. 5.
(15) Conferir os antecedentes históricos dessas contravenções em: REALE JÚNIOR, Miguel. Paternalismo en Brasil. São Paulo, 2007.
(16) Este parece ser um fenômeno comum, como observa Hirsch: “Enquanto o Direito Penal em vigor na Alemanha e em outros países raramente se utiliza de proibições diretamente paternalistas, recorre em maior extensão ao paternalismo indireto” (HIRSCH, Andrew von. “Paternalismo direto: autolesões devem ser punidas penalmente?”, tradução de Helena Regina Lobo da Costa. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 67, 2007, no prelo).
(17) A matéria é abordada à exaustão por Feinberg (Harm to self, pp. 344 e segs.).
(18) FEINBERG, Joel. Harmless Wrong doing: The Moral Limits of the Criminal Law. Oxford: Oxford University Press, 1990, v. 4, p. xx.
(19) As condutas descritas nos §§ 1º e 2º visam situações nas quais não há um consentimento genuíno e são, assim, legitimadas pelo princípio do dano a outrem (harm to others principle).
(20) FEINBERG, Joel. Op. cit., v. 3, p. 9.
(21) HIRSCH, Andrew von. Op. cit., no prelo.
(22) Luis Greco tratou do charlatanismo sob o ponto de vista do princípio da lesividade, concluindo pela falta de perigo relevante quando a vítima genuinamente consente à prática (GRECO, Luis. “‘Princípio da ofensividade’ e crimes de perigo abstrato – Uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas do delito”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 49, jul.ago./2004, p. 124). O Supremo Tribunal Federal, pela pena de seu ilustre ministro Cezar Peluso, poderá vir a enfrentar a questão no HC 85.718.
(23) FEINBERG, Joel. Op. cit., v. 3, p. 9.
(24) Cf. ÁVILA, Gustavo Noronha; GAUER, Gabriel José Chittó; GUER, Ruth Maria Chittó. “Comércio de órgãos humanos: até onde vai a autonomia do indivíduo”. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 15, nº 175, junho. 2007, pp. 17-19.
(25) Cfr. a abordagem de Feinberg acerca do “enigma da escravidão voluntária” (FEINBERG, Joel. Op. cit., v. 3, p. 71 e segs.).