Um novo espaço de análise, reflexão e pluralidade no
debate público sobre o sistema de justiça criminal






Recente substitutivo ao Projeto de Lei nº 62/90 da Câmara dos Deputados, aprovado pelo Senado Federal, e em vias de retorno à Casa Parlamentar de origem, objetiva emoldurar, do ponto de vista típico, o denominado crime organizado. Para tanto, o Senado Federal aproveitou a estrutura de um tipo convencional (o delito de quadrilha ou bando, constante do art. 288 do Código Penal) e definiu a nova modalidade criminosa com uma linguagem abrangente e confusa.
Mais uma vez o legislador penal, como tem sido uma constante nos últimos tempos, falhou no processo de criminalização, demonstrando total desconhecimento da matéria versada e da técnica de composição de figuras típicas. Antes de tudo porque não avaliou, com a devida clareza e a imprescindível profundidade, o fenômeno extremamente complexo do crime organizado e adotou uma forma simplista e, por isso mesmo, de nenhuma valia, no seu processo de tipificação. Depois porque a área de significado do conceito de crime organizado não se acomoda à ideia de ajuste ao quadro de tipos constantes da Parte Especial do Código Penal. Cuida-se de matéria intricada, de difícil caracterização e de pouca transparência. Bem por isso, conformar-se melhor no âmbito de uma lei penal especial, que pode, sem maiores dificuldades em nível de tramitação legislativa, aumentar o seu raio de incidência para abarcar novas e inesperadas situações delituosas, do que no corpo de um diploma legal que busca tendencialmente um nível maior de fixidade e de permanência. Por fim, porque não se confundem a criminalidade organizada e a criminalidade de massa, esta mais adequável ao tipo de quadrilha ou bando do que aquela. Tal distinção tão corretamente entrevista por Hassemer (“Segurança Pública no Estado de Direito”, in “Revista Brasileira de Ciências Criminais”, vol. 5º, pp. 56/59) evidencia que não se pode atribuir ao crime organizado o mesmo tratamento criminal e punitivo do crime de massa, mesmo que este tenha um razoável sustenta organizacional.

O crime organizado possui uma textura diversa: tem caráter transnacional na medida em que não respeita as fronteiras de cada país e apresenta características assemelhadas em várias nações; detém um imenso poder com base numa estratégia global e numa estrutura organizativa que lhe permite aproveitar as fraquezas estruturais do sistema penal; provoca danosidade social de alto vulto; tem grande força de expansão compreendendo uma gama de condutas infracionais sem vítimas ou com vítimas ou com vítimas difusas; dispõe de meios instrumentais de moderna tecnologia; apresenta um intricado esquema de conexões com outros grupos delinquenciais e uma rede subterrânea de ligações com os quadros oficiais da vida social, econômica e política da comunidade; origina atos de extrema violência; exibe um poder de corrupção de difícil visibilidade; urde mil disfarces e simulações e, em resumo, é capaz de inerciar ou fragilizar os Poderes do próprio Estado. É evidente que a tipificação de uma atividade criminosa dessa grandeza constitui um terrível embaraço para o legislador penal e não pode ser concretizada, de forma apressada, sem uma visão completa de toda a problemática. Isso não significa que a criminalização do denominado crime organizado deva ser prorrogada indefinidamente, mas apenas que se torna necessário um amplo e prévio debate, sobre a matéria, na comunidade científica, na própria sociedade e, sobretudo, entre os operadores jurídicos, para que se possa, com maior precisão, dimensionar o fenômeno, para efeito de reconhecimento de suas diversificadas facetas e de apreensão de suas relevantes conexões. Posicionamento diverso só permitirá a montagem de tipos – como o que consta no substitutivo aprovado – sem nenhuma possibilidade de captar, na sua inteireza, a questão do crime organizado, propiciando a formação de verdadeiros ralos de impunidade. Figuras punitivas apresentariam, nessa situação, apenas um sentido simbólico e só atenderiam a segmentos políticos autoritários ou interessados em posturas demagógicas e inconsequentes, servindo, afinal, aos objetivos do próprio crime organizado.
Por derradeiro, é necessário que se enfatize que nenhum combate sério ao crime organizado se esgota no processo tipificador. Sem a cooperação internacional, sem a melhoria do aparelhamento profissional dos que operam nessas áreas, a simples existência de uma adequada tipificação não tem o menor significado prático e não basta para tutelar a sociedade contra tão lesiva atividade criminosa.