Um novo espaço de análise, reflexão e pluralidade no
debate público sobre o sistema de justiça criminal






Doutor em Direito Processual Penal. Professor Titular no Programa Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado, em Ciências Criminais da PUC-RS. Advogado.
A Lei 12.654, de 28.05.2012 (entrada em vigor dia 28.11.2012), prevê a coleta de material genético como forma de identificação criminal, tendo mudado radicalmente a situação jurídica do sujeito passivo no processo penal, acabando com o direito de não produzir prova contra si mesmo. A nova lei altera dois estatutos jurídicos distintos: a Lei 12.037/2009, que disciplina a identificação criminal e tem como campo de incidência a investigação preliminar e, por outro lado, a Lei 7.210/1984 (LEP), que regula a Execução Penal.

Em linhas gerais, coletado o material, será armazenado no banco de dados de perfis genéticos, de onde poderá ser acessado pelas polícias estaduais e/ou federal mediante prévia autorização judicial. A extração se dará de forma “adequada e indolor”, e não poderá revelar traços somáticos ou comportamentais das pessoas, exceto a determinação genética de gênero. Os dados coletados integrarão o banco de dados de perfis genéticos, assegurando-se o sigilo dos dados. Para fins probatórios, o código genético será confrontado com as amostras de sangue, saliva, sêmen, pelos etc. encontradas no local do crime, no corpo da vítima, em armas ou vestes utilizadas para prática do delito, por exemplo. A partir da comparação, será elaborado laudo pericial firmado por perito oficial devidamente habilitado que analisará a coincidência ou não. A finalidade da coleta do material biológico será distinta: para o investigado, se destina a servir de prova para um caso concreto e determinado (crime já ocorrido); já em relação ao apenado, a coleta se destina ao futuro, a alimentar o banco de dados de perfis genéticos e servir de apuração para crimes que venham a ser praticados e cuja autoria seja desconhecida. Vejamos cada caso:
Aproveitou a nova legis a abertura do inc. IV do art. 3.º da Lei 12.037, de modo que, embora o suspeito apresente documento de identidade, poderá ser feita a identificação criminal e a extração compulsória de material genético, sempre que for “essencial às investigações policiais” e houver decisão judicial. Ou seja, poderá o juiz determinar a extração coercitiva de material genético de ofício ou mediante representação da autoridade policial, do Ministério Público ou da defesa. A lei exige a concorrência de dois requisitos nesta situação:
O fornecimento do material será feito de forma voluntária ou coercitiva (a lei não define, mas pensamos ser força necessária para o cumprimento da ordem, como sói ocorrer em situações similares), assegurando-se, apenas, que empregue uma “técnica adequada e indolor”.
Por fim, é perfeitamente aplicável aqui – por analogia – o disposto no art. 7.º da Lei 12.037: “no caso de não oferecimento da denúncia, ou sua rejeição, ou absolvição, é facultado ao indiciado ou ao réu, após o arquivamento definitivo do inquérito, ou trânsito em julgado da sentença, requerer a retirada da identificação fotográfica do inquérito ou processo, desde que apresente provas de sua identificação civil”. Não se justifica que nestas situações se constranja alguém a figurar eternamente no banco de dados genético.
Nesse caso, o material genético irá para o banco de dados visando ser usado como prova em relação a fatos futuros, sendo a intervenção corporal obrigatória e não exigindo autorização judicial para obtenção (apenas para o posterior acesso ao banco de dados). A única restrição legal diz respeito à natureza do crime objeto da condenação. Optou o legislador por (re)estigmatizar os crimes hediondos e o chamado agora “crime doloso cometido com violência de natureza grave contra pessoa” (lesões graves, gravíssimas ou morte da vítima). Ainda que a lei fale em “condenados”, é imprescindível a existência de sentença condenatória transitada em julgado.
Uma vez colhido o material genético e incorporado ao banco de dados, poderá ser acessado pela autoridade policial, estadual ou federal, mediante prévia autorização judicial. Neste caso, a lei não exige autorização judicial para a coleta do material, mas sim para o acesso ao banco de dados.
Por fim, a lei não prevê por quanto tempo esses dados ficarão disponíveis neste caso, mas pensamos ser sustentável a aplicação, por analogia, do instituto da “reabilitação” (art. 93 e ss. do CP), permitindo-se a retirada dos registros após decorridos dois anos do dia em que for extinta, de qualquer modo, a pena ou terminar sua execução.
O discurso científico é muito sedutor, até porque, em situação similar ao dogma religioso, tem uma encantadora ambição de verdade. Sob o manto do saber científico, opera-se a construção de uma (pseudo)verdade, com a pretensão de irrefutabilidade, absolutamente incompatível com o processo penal e o convencimento do juiz formado a partir do contraditório e do conjunto probatório. Essa prova pericial demonstra apenas um grau, maior ou menor, de probabilidade de um aspecto do delito, que não se confunde com a prova de toda a complexidade que constitui o fato. O exame de DNA feito a partir da comparação do material genético do réu “A” com os vestígios de esperma encontrados no corpo da vítima demonstra apenas que aquele material coletado pertence ao réu. Daí até provar que o réu “A” violentou e matou a vítima, existe uma distância que deve ser percorrida lançando mão de outros instrumentos probatórios.
Pode, ainda, ser estabelecida uma discussão sobre a validação científica dos métodos de análise, ou seja, discutir a validade dos testes a partir da natureza das amostras biológicas utilizadas, por exemplo. Não raras vezes, as amostras são encontradas em superfícies não estéreis, podendo sofrer danos após o contato com a luz solar, micro-organismos e solventes. Isso pode levar a equívocos na interpretação. Outro ponto fundamental é discutir o nexo causal, ou seja, como aquele material genético foi parar ali e até que ponto pode o réu ser responsabilizado penalmente pelo resultado pelo simples fato de ter estado com a vítima, por exemplo.
Outro aspecto a ser considerado é a possibilidade de manipulação desta prova, não apenas no sentido mais simples, de falhas na cadeia de custódia da prova, laudos falsos, enxerto de provas etc., mas também na possibilidade de fraudar o próprio DNA. O conhecido periódico The New York Times(2) noticiou que “cientistas israelenses divulgam em artigo a possibilidade de introduzir, com certa facilidade, em uma amostra qualquer de sangue ou saliva, o código genético de qualquer pessoa a cujo perfil de DNA se tenha acesso – sem que seja sequer necessário possuir uma amostra de seu material genético. A notícia é bastante relevante no sentido de minar a infalibilidade com que são tratadas as evidências e provas baseadas em testes genéticos a partir dos procedimentos usuais de perícia forense. E, ainda, as novas possibilidades de fraude que se abrem com o recurso à esta técnica podem aumentar os riscos potenciais do manejamento de informação genética, com reflexos claros para a atual tendência à compilação de gigantescos bancos de dados genéticos”.
Portanto, o exame de DNA é muito importante, e com certeza terá uma grande influência na formação da convicção do julgador, mas é apenas mais uma prova, sem qualquer supremacia jurídica sobre as demais.
Notas
(1) Sobre o tema, consulte-se nossa obra Direito processual penal, 9. ed., publicada pela editora Saraiva.
(2) Notícia publicada em 17.08.2009 no site <http://www.nytimes.com/2009/08/18/science/18dna.html>.